domingo, 11 de maio de 2008

O Médio

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Prometi a mim mesmo que não dedicaria muitas linhas por aqui em relação à música, assunto que já me ocupa 7 dias por semana. Mas, realmente, não dá pra evitar quando tantas mentiras tomam conta do noticiário e são exaustivamente repetidas no piloto automático.
São exatamente 18:38. Na tv a cabo aqui de casa existem basicamente 4 canais relacionados à música: MTV, MTV Hits, VH1 e Multishow (TVZ). No primeiro, passa algum programa sem graça; afinal pra que música no canal que nasceu pra isso?! No segundo um clipe de Hip Hop. O artista nem sei quem é, preciso esperar até o final do clipe. Mas perco a paciência e mudo pro Multishow. Novamente Hip Hop. Só que desta vez, consigo ao menos saber que é do Akon. Preferia Kanye West ou Lupe Fiasco; conseguem ao menos prender a minha atenção. Mudo pro único que falta: VH1. Rola uma playlist dominada por clipes cafonas da década de 80 sobre o tema casamento. Quem ouve Antena 1 e JB FM aqui no Rio se deliciaria.
Penso em desligar a TV, já que algumas perguntas ficam na minha cabeça:

1) Em que momento mesmo esse tal "Hip Hop" dominou o pop do Brasil e dos EUA?

2) Em que momento passaram a chamar de Hip Hop, um gênero que surgiu nos anos 70 em Nova Iorque repleto de crítica social e que nos deu tantos spin offs maravilhosos como a break dance e principalmente o grafite, se tornou um inventário de fascistas machistas (até trava a língua!) e de exaltação ao consumismo e ao vazio?

3) Desde quando as emissoras e as rádios assumiram que todo mundo gosta disso e que devem, portanto, dedicar grande parcela da programação ao gênero?


Esta última pergunta, aliás, é a mais fácil de responder. Ouvi da boca do diretor de programação de uma das maiores redes de rádios pop do Brasil: "Às vezes acho que o público emburreceu".
Culpa do público... Sei...

Fato é que existe, sempre existiu e sempre vai existir uma parcela muito grande desse "público" que pauta o gosto musical pelo que está tocando no momento. É importante estar atualizado nas músicas, porque assim dá pra ser "in", confratenizar com os outros ou, quem sabe, até poder dizer: "Não conhece?! Peraí que vou gravar procê!". É o que o indie adora fazer, em maior escala. E, claro, quando a música toca na boate, dá pra saber de quem é e continuar dançando da mesma forma que dançava a anterior. Afinal, nesse "hip hop" atual, basta balançar o corpo levemente no ritmo que você dança o playlist da noite inteira.

O grande público, principalmente diante de tantas ferramentas, sites e acessos internéticos, que em teoria deveriam provocar o efeito inverso, o da diferenciação, da busca pelo novo, pode até ter emburrecido. Mas acho que não é por aí; a explicação é muito mais simples e não envolve público: o mercado da música se afunda na mediocridade. E nem estou falando das gravadoras. O assunto é mesmo com os meios: jornais e revistas, TV e, principalmente, rádio.
Segundo a lei da acomodação, por que investir em uma rádio rock (hoje absolutamente inexistente no Rio de Janeiro e em São Paulo), se uma rádio composta de pop e hip hop pode dar muito mais audiência e, conseqüentemente, dinheiro? Nesse contexto, seria, inclusive, espantoso existir uma rádio inteiramente dedicada à MPB (ou, na verdade, a uma parcela dela de fato) no Rio. Mas a surpresa se desfaz ao lembrarmos que consultórios médicos e elevadores precisam de alguma trilha sonora.

O médio domina a programação e os programadores. Mas estes se esquecem de um dado fundamental: o mediano, o que todo mundo aceita escutar ou ver porque não tem tempo ou não se preocupa em procurar outras coisas, muda sempre! Nos anos 80 e início dos 90, ele era dominado pelo rock, pelo pop romântico e pelo sertanejo. Na metade da década de 90, o pagode popular, o axé e o dance pop ganharam força. Hoje nem precisamos falar.

A parada de sucessos é cíclica. E quem ousa sai na frente para definir o comportamento de todo um grupo de jovens e adolescentes por vir. Como Newton nos lembrava com a física, existe ação e reação. Até a reação ser incorporada pelo mainstream e virar ação. Enquanto isso, não nos esqueçamos da internet, nossa maior aliada para descobrir coisas novas, de qualquer gênero musical, em qualquer registro.

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Pra não dizerem que estou ranzinza, vai uma recomendação com muitos elogios. Ainda está em cartaz em alguns pouquíssimos locais no Brasil uma maravilha do cinema mexicano intitulada "Zona do Crime", ou "La Zona", no original, vencedor do Leão de Ouro de Melhor Filme de Estréia no Festival de Veneza de 2007. Ao lado de uma favela, na Cidade do México, existe um condomínio de alto luxo, cercado por altíssimos muros, intitulado "La Zona". Durante uma tempestade, um outdoor cai, quebrando parte de um muro e cortando a energia do condomínio. Dois homens e um adolescente da favela passam para outro lado para roubar alguns pertences. Mas a forte segurança do local age e mata os dois, sem conseguir evitar, porém, que um deles mate uma senhora. O adolescente, por sua vez, fica preso no condomínio.

É aí que entendemos o que realmente está por trás desse cercadinho de luxo: um grupo de pessoas assustadas e que são capazes de tudo, tudo mesmo, para manterem seu padrão de vida. Quase como os vizinhos do apartamento da protagonista de "O Bebê de Rosemary". As decisões são tomadas em conselho, como em qualquer cidade sinistra de filme de terror, a polícia precisa de mandado judicial para entrar no local, a liberdade de agir e punir com as próprias mãos é plena.



E a forma como o diretor Rodrigo Plá articula os diferentes protagonistas (os adolescentes do local, os homens, as mulheres quase sempre donas de casa, a mãe do adolescente perdido que o procura, a namorada dele, o policial violento que quer desmascarar a corrupção no condomínio) é absolutamente brilhante! A caça dos "adultos" ao adolescente escondido, o quanto os filhoes deles emulam ou repelem o comportamento deles, a amizade de um deles com o foragido, os mecanismos corruptos da polícia. Tudo isso, envolto em belíssimas atuações, faz de "Zona do Crime" um filme absolutamente contundente, tanto em forma, no seu misto de suspense com tragédia, quanto em conteúdo.

Assusta ainda mais quando percebemos que uma história a princípio tão complexa é tão impressionantemente real e atual.

Tá logo ali na esquina.
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"Skins" acabou mês passado. E como acabou bem... Vai ser difícil uma série direcionada ao público adolescente alcançar o altíssimo nível que ela estabeleceu. Dizem que já estão produzindo versões da série na Espanha e nos EUA. Era de se esperar.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Corpos de Teflon



Qualquer tia, vó, mãe ou mero purista tem sempre a mesma coisa a dizer a respeito da TV (sim, essa entidade homogênea que o próprio uso do termo indica): hoje em dia, só tem baixaria. Mas é uma baixaria da qual poucos conseguem remover o olhar. Fascina àqueles que ali procuram mais do que realmente existe: corpos assépticos se chocando, pudores mascarados em ousadia e sensual preterido pelo pseudo-explícito.

O sexo só aparece um pouco mais sério quando velhinhas ou terapeutas conseguem programas na TV paga. Mais do que falar do estado das coisas, porém, é mais interessante recorrer a duas produções que vi recentemente e que (justiça existe!) fogem a esta regra. O primeiro é o último filme de John Cameron Mitchell, o cara por trás do divertido "Hedwig and the Angry Inch", filme sobre um rockstar travesti, que, bem, perdeu um bom pedaço do pênis e ficou apenas com um "angry inch". "Shortbus", o tal último filme, é de 2006 e já passou por alguns festivais no Brasil. Não é de se espantar que não tenha saído até agora em circuito comercial ou DVD.




O filme se divide em duas histórias principais, ainda que existam outras satélites: uma psicóloga conjugal que jamais teve um orgasmo (talvez a mais interessante) e um casal homossexual tratado por ela que permaneceu 5 anos fiel e que deseja incluir um terceiro elemento na relação. E um dos personagens principais é um clube chamado "Shortbus", em que o sexo é livre, possível com qualquer um e de qualquer forma. Quem se chocou com o sexo oral do excelente "Brown Bunny", provavelmente vai ter mais problemas com esse. As cenas de sexo são todas explícitas, a interação entre os atores, todos amadores e recrutados via MySpace, real.

Em que medida, então, se diferencia de um filme pornô? Fácil: o explícito não evoca o voyeur, mas questiona o porquê de se esconder o sexo, quando o tema principal envolve justamente as diversas formas de se lidar com ele. É como filme policial sem assassinato ou de terror sem o elemento aterrorizante. Não é particularmente um grande filme no sentido técnico. Porém, "Shortbus" não se recusa a mostrar aquilo de que fala. E culmina com uma orgia mais focada em celebrar do que em chocar. Como a que Fellini faria em alguns filmes ("Satyricon", "Oito e Meio", "A Doce Vida") se o pudor da época e a sua vontade artística permitissem.


Nem tão ousado, porém igualmente iconoclasta (para os padrões televisivos) é a série inglesa "Skins". Primeiramente, porque coloca atores adolescentes na mesma idade dos personagens e não caras e mulheres de 26 anos pra fazer garotos e garotas. Sorry, nem toda a maquiagem do mundo me faz engolir tamanha artificialidade. E segundo porque , ao contrário das sitcoms americanas, em que qualquer personagem quase sempre está de calça comprida, tênis e camisa, mesmo que esteja deitado na cama, tem uma relação nem um pouco hipócrita com o corpo desses adolescentes:





Os garotos aparecem sempre sem camisa, de cueca ou até mesmo nus. Mais até do que as próprias garotas (ainda que elas tenham o seu "share" de liberdade), ao contrário do que uma sociedade machista como a nossa sacramentou. Não existe um personagem principal propriamente dito, cada capítulo é centrado num deles. Começa com Tony (interpretado pelo menino de "Um Grande Garoto", lembram?!), um adolescente perspicaz, inteligente e ambíguo em suas pretensões que, quase como um personagem shakespiriano ou de Oscar Wilde, gosta de criar intrigas e de armar situações. Ele namora a bela Michelle, que é a garota dos olhos do melhor amigo de Tony, o atrapalhado (e tímido para relacionamentos) Sid. Completam o grupo Anwar, de família muçulmana, o seu melhor amigo (gay) Maxxie, a responsável Jal, o "louco" Chris (que experimenta qualquer droga ou situação) e a bulímica Cassie.


Naturalmente, como toda série focada em adolescentes, Skins tenta dar conta de quase todas as aflições que os atingem. E quase sempre é bem-sucedida na empreitada, uma vez que foge do clichê e do moralismo. Numa série de TV, nunca a amizade entre dois adolescentes (Tony e Sid) foi tão bem retratada, nunca um personagem adolescente homossexual (Maxxie) verossímil ganhou tanto destaque, nunca o abandono e a solidão (Cassie e Chris) foram tão evidentes. E, principalmente, um dos pontos mais importantes da adolescência, a vida sexual, foi enfatizado como deveria.

Nenhuma outra série que eu conheça teria coragem de fazer esta cena com um personagem principal que deseja experimentar:




Ou ousaria abordar uma relação professora-aluno sem receios. Ou arriscaria, nos dias de hoje, falar de um garoto virgem com medos. Ou do uso de drogas como escapismo. Ou da idéia de suicídio na adolescência. Ou da amizade masculina sem tolos receios de que pareça gay (e não é!). Enfim, tudo isso se desenrola na tela, com uma trilha sonora matadora (The Gossip, Decemberists, Foals, Belle and Sebastian, Bloc Party, Yeah Yeah Yeahs e até um improvável Cat Stevens), e nuances que alternam a comédia (existem cenas hilárias!) e o drama sem a mão pesada e o moralismo travestido de denúncia de um "Kids", ícone adolescente mais do que ultrapassado.

Sinal dos tempos? Tomara. Já tava ficando entediado.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Ah, as listas...


Tinha me prometido que ia parar um pouco de falar de cinema e que ia logo mudar de assunto. Mas a droga do hábito me fez retornar ao mesmo tema... Então, rola o Oscar nesse fim de semana. Mas as pessoas não parecem tão cientes disso. Por que?! Não sei bem... Sei de uma coisa, porém: nos últimos anos, os indicados/vencedores têm sido de muito melhor qualidade. Nos anos 90, arrisco dizer, o Oscar viveu seus anos negros. Durante esse período, ganhavam Oscars filmes que, nas CNTP, seriam apenas bons, legais e nada além: "Forrest Gump" (1994), o fraco "Coração Valente" (1995), "O Paciente Inglês" (1996), "Titanic" (1997) e "Shakespeare Apaixonado" (1998).



No final da década de 90, o Oscar ensaiou uma virada com "Beleza Americana". Mas aí engolimos, em seguida, "Gladiador" (2000) e "Uma Mente Brilhante" (2001), em um ano em que concorria uma obra-prima ("Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel"). Depois, melhorou muito, tanto pelos indicados quanto pelos vencedores: "As Horas", "Encontros e Desecontros" (ou "Lost in Translation"), "Sobre Meninos e Lobos", "Brokeback Mountain", "Boa Noite e Boa Sorte", "Munique", "Cartas de Iwo Jima" e "Os Infiltrados" são todos Grandes filmes, com o "g" maiúsculo mesmo. Teve, é claro, um belo escorregão, quando em 2005 premiou o péssimo "Crash - No Limite", que nem ser indicado merecia.

E esse ano, a disputa traz 5 grandes filmes. Talvez, mais do que nos últimos 20 anos, o Oscar esteja disputado integralmente por concorrentes de peso; "Onde os Fracos Não Têm Vez" e "Sangue Negro" são pequenas obras-primas e "Juno", "Conduta de Risco" e "Desejo e Reparação" são, no mínimo, ótimos. E ainda tem o excelente "Sweeney Todd", que ficou de fora. É muito provável que o filme dos Irmãos Coen seja o grande vencedor da noite. "Desejo e Reparação" e "Sangue Negro" têm chances, mas parecem um pouco menores. Os outros têm a própria indicação como prêmio. Um ponto interessante é a constante politização do prêmio. Este ano, todos os indicados tocam em alguma questão política enraizada na sociedade americana: a riqueza e o petróleo ("Sangue Negro"), a corrupção ("Conduta de Risco"), a gravidez adolescente e o aborto ("Juno"), a mentira e a ignorância ("Desejo e Reparação") e o medo e a violência ("Onde os Fracos Não Têm Vez").

Já que todo mundo pode fazer lista, vou escolher os meus favoritos de 2007 (que tenham sido lançados, no Brasil ou nos EUA, comercialmente), sem ordem de preferência:

Ratatouille - O diretor Brad Bird, o gênio por trás de "O Gigante de Ferro" e "Os Incríveis", criou uma nova obra-prima para a Pixar. A saga do ratinho cozinheiro vai além da busca do sucesso e da realização, é muito melhor do que isso: trata genuinamente da alma humana, das memórias e do afeto que estão ligados à culinária.

O Hospedeiro - Fazia tempo que eu tinha deixado de acreditar que um filme de monstro podia me surpreender. Até surgir essa produção coreana não menos do que genial! Poucos filmes, hoje, conseguem nos surpreender tanto quanto este.

Zodíaco - O melhor filme que David Fincher fez até hoje é um brilhante estudo das reações humanas diante do mistério. Faz lembrar alguns dos maiores clássicos do cinema policial americano. A grande vantagem é que é, ao mesmo tempo, atemporal em sua narrativa.

Império dos Sonhos - A sensação é que este é o filme que David Lynch sempre quis fazer. Quem viu o final da série "Twin Peaks" pode logo imaginar aquele delírio durando 3 horas. É uma experiência audiovisual que extrapola as barreiras do cinema e jamais deixa o espectador indiferente.

Rocky Balboa - Sim, o do Stallone! Até hoje só tinha visto o primeiro, que sempre achei bom. Não vi os outros, que sempre me pareceram caça-níqueis. Mas resolvi dar uma chance a esse. E como fiquei feliz! É um belíssimo filme sobre a existência humana diante daquilo que amamos (família, amigos, profissão), um réquiem necessário.

Paranoid Park - É, junto com "Elefante", a obra máxima de Gus Van Sant e isso não é pouco. Aqui, ele atingiu o ápice da sua maturidade e domínio como cineasta. O resultado é um deleite para os olhos.

Onde os Fracos Não Têm Vez - Os Irmãos Coen fizeram um clássico no momento em que editaram a última cena deste filme. Tem tantas qualidades, que dava para ficar linhas e mais linhas descrevendo, mas isso já fiz no último post.

Sangue Negro - Para quem já tinha se acostumado com o estilo de Paul Thomas Anderson, a surpresa foi boa: é diferente e, ao mesmo tempo, traz todas as qualidades dos seus filmes anteriores. É uma pequena e peculiar obra-prima, ampliada por brilhantes trabalhos de fotografia, trilha sonora (do multi-instrumentista Jonny Greenwood, do Radiohead) e atuação, em especial de Daniel Day-Lewis.

Sweeney Todd - Talvez seja este também o filme que Tim Burton sempre quis fazer. Negro até o último fio de cabelo, os risos vêm mais pelo incômodo que gera na platéia do que por situações explicitamente engraçadas.

E os meus 2 leitores, do que gostaram mais?! Aliás, percebi que nem 10 filmes tenho... Tudo bem, infelizmente não vi muuuuiiiitos filmes ano passado, em especial muitos brasileiros que queria demais ter visto e que com certeza teriam lugar nessa lista. Locadora existe para tirar esses atrasos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A Morte do Herói ou A Reinvenção do Faroeste


E não é com animação que proclamo isso, vai. O que seria da minha infância sem X-Men, Cavaleiros do Zodíaco, Jaspion, Changeman, Jiraya e tantos outros?! Ou de gêneros clássicos do cinema como a aventura ou o faroeste? Fato é que os Irmãos Coen e o escritor Cormac MacCarthy não tomam conhecimento disso. "Onde os Fracos Não Têm Vez" (ou, melhor, "No Country for Old Men", no original) mistura suspense, drama, um pouco de terror e faroeste, clássico refúgio de heróis, para contar a história de um homem que, após se apoderar de uma mala repleta de dinheiro, passa a ser perseguido por um assassino implacável de nome esquisito (Anton Chigurh, muito bem interpretado por Javier Bardem) que deixa um rastro de mortes investigado pelo detetive interpretado por Tommy Lee Jones.

Pode parecer estranho, mas talvez seja Chigurh o verdadeiro protagonista do filme. Sua crueldade transcende a de qualquer vilão que tenhamos em memória imediata. Mata por matar, sem critério. Algumas vezes, "brinca" com a vida de sua vítima, jogando cara e coroa para decidí-la. E, por incrível que pareça, respeita o resultado, ainda que este seja a vida. Sua arma é metaforicamente peculiar: um rifle de ar comprimido absolutamente silencioso, que, por vezes, sequer atira balas. Chigurh é, antes de tudo, a personificação do medo e do terror. Para o cowboy que se apodera do dinheiro e precisa fugir ao mesmo tempo em que protege a sua esposa, ele é a punição, o terror. Para o xerife que o persegue, ele é um fantasma, a morte.


Nenhum dos dois, porém, parece querer enfrentá-lo, encará-lo de frente. A menos que seja necessário. No faroeste dos irmãos Coen, o confronto foi substituído pelo terror. E, tal qual Ang Lee havia feito com o seu "Brokeback Mountain", um gênero é reinventado. Afinal, a Brokeback Mountain era um refúgio do medo, da incompreensão e do terror do meio, tão marcantemente representado na lembrança de um incidente na infância do personagem de Heath Ledger. É curioso o quanto o faroeste, gênero clássico do embate do americano com o outro invasor (seja este o cowboy ou o índio) ou dele com a lei, tenha sofrido uma mudança profunda e se tornado tão atual e moderno. Ao menos no conteúdo, já que formalmente, esses diretores fazem cinema clássico da maior qualidade. A mensagem é sutil: o problema não é o outro, mas o medo dele, o terror, que está no seio da própria sociedade americana.

Só que dessa vez, o tal filme subversivo deve abocanhar alguns Oscar, já que personagens do mesmo sexo só brigam entre si... O mérito, porém, por esta obra-prima, talvez o maior filme que os irmãos Coen tenham feito até hoje (e, olha, que outra adaptação literária, "E aí meu Irmão, Cadê Você?" briga por esse posto), não é apenas do diretor. Não cheguei a ler o livro de Cormac MacCarthy, porém, por ler "A Estrada", seu livro seguinte, vencedor do Pulitzer no ano passado, é possível identificar pontos em comum. As histórias de MacCarthy são negras, tem um forte tom pessimista. A morte é algo que se move contra os personagens e tudo o que eles têm que fazer é se manterem vivos. Há, porém, uma força muito forte que os faz sobreviver. E é tão simples, quanto cafona, alguns devem achar (eu não!): amor.



Amor à vida do personagem de Tommy Lee Jones, uma vez que é cada vez mais fraca sua crença em um Deus e cada vez maior o seu medo do vazio da morte (e de um resto vazio de existência). Amor da esposa em relação ao marido perseguido (e, de certa forma, dele a ela). O amor do pai pelo filho e vice-versa em "A Estrada", mas disso já falo. O personagem de Javier Bardem jamais é humanizado, até o final. Ao confrontar a esposa do fugitivo, ela o lembra de que as escolhas são dele, se ele mata ou não, a culpa é dele, e não de uma força oculta do universo que opera através dele. Xeque-mate.


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São essas mesmas escolhas, diante de forças aparentemente maiores, que pautam "A Estrada", brilhante romance do mesmo escritor de "Onde os Velhos Não Têm Vez". Usando um estilo que mistura poesia e economia extrema na narrativa, criando um estilo único, MacCarthy retrata um pai e seu filho que vagam por um EUA desolado, destruído por algo que jamais sabemos. As cidades estão em chamas, os corpos estão por toda a parte, o céu está coberto de cinzas, a comida é escassa e hordas de saqueadores espalham o terror. Os dois se mantém vivos, caminhando em direção ao oceano, sem saber por que, graças ao amor que sentem um pelo outro. E precisam, entre outras coisas, superar a dificuldade de confiar em outros, coisa que o filho, capaz de enxergar caminhos por um mundo árido e destruído para o amor, incentiva e o pai, machucado por tudo, evita.

O livro, além de receber o prêmio máximo da literatura americana, foi escolhido por Oprah Winfrey, sim a apresentadora de TV número 1 dos EUA, para o seu Book Club, do qual milhares de americanos fazem parte. É uma escolha ousada e, ao mesmo tempo, muito oportuna: ainda que seja literatura do mais alto nível, é um livro acessível. Ah, quem me dera que aqui uma Ana Maria Braga tivesse um clube do livro também... A ignorância por essas terras, seria bem mais rara... A Ofélia (lembram dela?!) bem que tentou. Só que seus livros só traziam receitas e o tempo de leitura era gasto na cozinha... Ainda que a comida ficasse boa. Muito boa.

"A Estrada" já está sendo adaptado para o cinema (e eu acho um livro muuuuiiiito difícil de adaptar, mas vejamos o que será feito) e vai trazer Aragorn (Viggo Mortensen) no papel do pai e o desconhecido Kodi Smit-McPhee (que já ganhou até prêmio de jovem ator do Institudo de Cinema Australiano) no do filho. A direção é de John Hillcoat, que tem no currículo clipes de bandas como Nick Cave & the Bad Seeds, Siouxsie & the Banshees, Manic Street Preachers, Bush, Placebo, Suede, Depeche Mode, Muse, entre outros. Tá, os clipes são bons. Mas acho que o filme pediria o oposto disso... Enfim, vamos conferir e ver no que dá.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Paranoid Park


Nesta sexta, chega, finalmente, aos cinemas o último filme do diretor Gus Van Sant, que recebeu, ano passado, em Cannes, a Palma de Ouro comemorativa dos 60 anos de festival. Tudo bem, todo ano filmes, quase todos marcantes, são premiados por lá. Mas receber um prêmio comemorativo significa um pouco mais: a condecoração fica impressa, para sempre, em um lugar distinto, especial. O valor de Paranoid Park, porém, não é único apenas para o célebre festival: dentro da obra de Gus Van Sant, ele representa o ápice de um ciclo estilístico que começou com "Gerry" (2002) e que se desenvolveu no brilhante "Elefante" (2003) e no inquieto "Last Days" (2006).

Poucos diretores são capazes de retratar nas telas tão bem o interior da sociedade americana quanto Gus. Esqueça os símbolos clássicos nos produtos de Hollywood: são nada além de repetições que exageram aspectos do american way of life e são tão eficazes para nos convencer quanto para reiterá-los aos próprios americanos, que, quando no mínimo incrédulos, contribuem para a falha no processo. "Paranoid Park", assim como "Elefante" já fazia tão bem, nos insere nos dilemas americanos não apenas pelo conteúdo (guerra do Iraque, crises do high school, entre tantos outros), mas também, e principalmente, pela forma (ainda que esta seja cerceada por uma narração em off que se prova, no final, mais interessante do que parecia): imagem e som recriam silêncios em corredores, labirintos sonoros na pista de skate, sentimentos do personagem principal.

Que, por sua vez, é um adolescente, skatista, de 15 anos de idade (e, outro mérito do diretor: ele escala não-atores com a idade dos personagens e não marmanjos maquiados e artificiais) interpretado com uma economia muito eficaz pelo estreante Gabe Nevins (recrutado via MySpace!). Numa noite, em que visita o tal Paranoid Park (uma complexa pista de skate), ele causa um acidente em uma linha de trem que vai assombrá-lo. Nunca a narrativa fragmentada pareceu tão bem utilizada em um filme de Van Sant. Afinal, é a espinha dorsal da sua reinvenção estilística, algo tão raro quanto precioso e louvável em um diretor que já tinha tantos filmes (de qualidade) no currículo.


Fazer de "Paranoid Park" uma história com começo, meio e fim, nesta ordem, certamente aproximaria o filme de um suspense; representaria um movimento de acontecimentos em um espaço de tempo em direção a uma conclusão, que, por sua vez, responderia uma pergunta: será o adolescente punido ou não pelo que aconteceu? Isso, ainda bem, não interessa a Van Sant. O importante é a transformação interior do personagem, ou seja, o estado e não a ação. Daí a forma elíptica como os corpos deslizam pelas cenas, os longos travelings e câmeras lentas.

Essas, aliás, funcionavam anteriormente mais como recursos estéticos do que como fonte de expressão de um estado. Em "Paranoid Park", porém, elas operam tanto como simbolismos ou metáforas quanto para permitir que percebamos algo que passaria despercebido. Dessa forma, ela se detém por alguns instantes no olhar que o protagonista dirige ao seu amigo e no que este lança de volta, como se nos informasse que entre os dois existe um afeto marcante. Ou em skatistas que deslizam por um túnel selado por barras de metal, ilustrando a sufocante sensação que se abate sobre o garoto. Ou até mesmo em saltos contínuos de skatistas, que termina com um humor inesperado, assim como a cena em que ele rompe com a namorada (que manifesta olhares e frases acentuadamente engraçadas pela lentidão das imagens). Igualmente notável é a seqüência em que o menino conversa com o pai. Fora de foco durante a maior parte da cena, após formarmos uma imagem mental dele, a câmera finalmente permite que tal imagem seja dilacerada pelo pai que avistamos.

O skate, por sua vez, tem papel central no filme. Isso é acentuado pela mais do que feliz escolha como cenário da cidade de Portland (capital do Oregon), um dos mais famosos redutos do skate nos EUA. O Paranoid Park é um mundo à parte pelo qual o garoto nutre profundo interesse: ali todos são um outro personagem, marcado pelas habilidades numa pista para a qual tanto ele quanto o seu amigo não se sentem preparado. Tanto que sequer consegue adentrá-la, observando tudo de fora. Mais do que uma comunidade à parte, a pista de skate é um refúgio (isolado, já que não produz a identidade de ninguém por nenhum outro meio, senão a habilidade no esporte) para um mundo complexo demais. Sua dinâmica é elíptica, suas regras são simples e o garoto parece encarar esse universo mais como um fascinante ballet do que como um esporte radical.

A solidão continua; o que muda no Paranoid Park é a maior possibilidade de compreender e de ser compreendido. No mundo exterior à pista, porém, o isolamento é muito mais presente: o garoto habita o limbo existencial que existe entre os primeiros estágios da adolescência, que sua namorada e as amigas tão bem representam, e a existência adulta. O grupo da namorada pode ser fútil, mas os outros interesses estão apenas começando a surgir, inclusive uma nova garota, a quem confessa, por exemplo, não gostar de notícias da guerra do Iraque, ainda que não saiba quais são. O trágico acidente não desperta apenas a culpa, mas a certeza de que nada pode ser igual. Mesmo que o próximo estágio não esteja claro.

Outras dicas:


Cinema

Reparação - Poucas vezes, uma adaptação literária foi tão cinematográfica. Um excelente trabalho de direção, fotografia, trilha sonora, edição, direção de arte, além de um roteiro interessante, fazem do filme uma bela experiência. Ainda que ela fique arranhada por algumas frases no final. Cinema clássico até o último fio. E isso pode ser muito bom!

















quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Realmente importa?



Ir ao cinema, recentemente, tem-se tornado um jogo de paciência. Até pouco tempo atrás, qualquer falatório logo era suprimido por ríspidos pedidos de silêncio. Hoje, porém, as coisas andam diferentes: falar ao longo do filme, mesmo que apenas interagindo com os acontecimentos na tela, tornou-se uma prática mais do que comum. E o falatório não é a única interrupção a um mínimo de concentração em relação ao que se passa na tela. Intermináveis pacotes de bala, pipoca, McDonald's e até Subway misturam-se ao filme.

Parece discurso de um velho resignado a considerar tudo o que é atual prontamente inferior ao estado passado, muitos vão achar. Ser apocalíptico, porém, não combina comigo: vamos aos fatos. Antigamente, havia um abismo entre a experiência cinematográfica e a de assistir a um filme em casa. Atualmente, Tvs de plasma, LCD, home-theaters, DVDs, Blue-rays, HD-DVDs, computadores, DVDs portáteis (inclusive os instalados em automóveis) entre tantos outros aparelhos tornaram a experiência audiovisual banal. Ela pode acontecer em qualquer lugar e em qualquer circunstância.

Não à toa, a ida ao cinema pareça a tantos algo tão banal quanto qualquer uma dessas atividades. Prova disso são os avisos que precedem os trailers; se antes davam conta de informar saídas de emergência e de pedir o desligamento de celulares, agora incluem invariavelmente um pedido de silêncio durante a sessão. Os problemas, porém, não acabam por aí. Em 2007, ainda que o país tenha recebido 135 novas salas de cinema, o público foi 2,9% menor do que em 2006. O cinema brasileiro, por outro lado, aumentou sua participação no público, ampliando de 10,9% para 11,1%.

Preços estratosféricos de ingressos e um ano de péssimos blockbusters talvez expliquem a situação. Ou talvez, quem saiba, o cinema esteja deixando de ser uma experiência de preferência para a última geração, acostumada, cada vez mais, a situações interativas proporcionadas por jogos eletrônicos, internet e celulares. Nesse sentido, o crescimento da produção de filmes em 3D e de salas preparadas para projeções desse tipo, que permite uma forma primitiva de interação - a de tentar alcançar a forma que se projeta à nossa frente - podem indicar que uma discussão mais profunda seja necessária.

Se é o fim do cinema tal qual o conhecemos? Pergunte ao teatro o que ele acha dessa indagação. Pessoalmente, fico com apenas uma afirmação: as coisas voltaram a esquentar.