domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sobre injustiças e equívocos

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Pensando com calma outro dia me dei conta que 2008 foi um dos anos mais negros para o cinema. Em geral. Se fosse elaborar uma lista com os 10 filmes que mais gostei, certamente não conseguiria completar 10... E em tempos de longas pouco inspirados, a crítica (e principalmente o público, mas este é tema para outro momento) deveria, acima de tudo e ao menos em teoria, exercer uma pressão contrária, esclarecendo ao espectador a irrelevância de tantos filmes incapazes sequer de divertir.

Mas não. Esta mesma crítica, cada vez mais composta por entusiasmados espectadores de uma dúzia de filmes cults, se contenta em tirar observações fáceis e óbvias a respeito das histórias narradas pelos filmes, sem procurar, numa completa e arrogante ausência de auto-crítica, se questionar se o óbvio, o que está ali na tela, não esconde camadas de significado e jogos que vão além do que está explícito.

Provas recentes disso são as desastrosas críticas feitas aos filmes "O Leitor" (geralmente, mal aceito) e "O Curioso Caso de Benjamin Button" (de aceitação ampla). "O Leitor" carrega consigo um peso anti-popular muito forte: dizem que foi o filme que eliminou o superhipermegaestimado "O Cavaleiro das Trevas" do Oscar deste ano. Li crítica, inclusive, que comparava (!) os dois filmes. Se isto realmente procede ou não, não importa em absoluto. O fato é que a adaptação do diretor Stephen Daldry (Billy Elliot, As Horas), um dos mais injustiçados cineastas da atualidade pela crítica, para o romance do alemão Bernhard Schlink é uma grande obra do cinema clássico! E retoma, numa análise talvez por demais precoce da sua obra, um universo temático que explorara com o sublime "As Horas": a narrativa como forma de estabelecer um fio existencial, de conferir sentido a acontecimentos, ações ou sentimentos confusos ou inexplicáveis.



Essa é a última tentativa de redenção do personagem-narrador do livro, que Daldry modifica e coloca de forma sutil no filme, evitando as armadilhas fáceis da narração em off. A narrativa em questão, ambientada na Alemanha Ocidental da década de 50, conta a história de Michael Berg, um adolescente de 15 anos de idade que é socorrido por uma mulher de meia idade (Hannah) quando passa mal no meio da rua em decorrência de hepatite. Ao retornar para agradecê-la, surge entre os dois um relacionamento íntimo e forte, que é interrompido pelo sumiço inesperado dela. Anos mais tarde, enquanto cursa a faculdade de Direito, Michael reencontra Hannah e descobre fatos inimagináveis sobre o passado dela. O nome "O Leitor" se deve ao fato de que toda vez antes de irem para cama, Hannah pede a Michael que leia a ela. E ele escolhe em sua maioria romances, de D.H. Lawrence, Tolstói, Homero em leituras que Hannah acompanha com grande interesse e que permitem a Michael perder, aos poucos, a sua timidez.


A opção por uma narrativa um pouco menos centrada no eu-personagem permite a Daldry usar na construção do filme um dos preceitos básicos do cinema clássico: o deslocamento de corpos pelo tempo e pelo espaço. Dessa forma ampara a primeira parte da história nos corpos frequentemente nus ou seminus de David Kross e Kate Winslet, ambos excelentes como Michael e Hannah. É nessa interação que ele também estabelece a relação de poder do feminino bruto de Hannah sobre o masculino vulnerável de Michael; o personagem masculino protagoniza cenas de nudez mais enfáticas do que a feminina e frequentemente está dominado por ela, seja quando Hannah lhe dá banho ou quando lhe explora a sexualidade. No primeiro contato entre os dois, inclusive, Daldry sabiamente elimina a trilha sonora sempre muito presente em seus filmes, e amplifica os efeitos sonoros, criando uma opressão de elementos banais diante de uma situação climática para os protagonistas.



Esta interação de corpos permite que se evidencie, mais tarde, a incapacidade de Michael de se aproximar afetivamente de outras mulheres e, inclusive, de estabelecer qualquer contato corporal com Hannah no reencontro de ambos. Daldry reconhece que a determinação de um encontro de corpos ou não está contida no tempo e no espaço, sendo difícil que aconteça de forma igual ou repetida por seres que estão em constante mudança. O Michael que reencontra Hannah em 2 momentos posteriores é completamente diferente daquele que a amou: seu sentimento ficou preso no passado, não-consumado em sua totalidade, reprimido pela ausência súbita e inexplicável do ser amado e perdido no mistério do próprio desaparecimento, em um primeiro momento. E em um segundo momento, destroçado pela culpa de não agir a favor dela e pelo passado do qual não consegue extrair sentido.

O amor localizado no espaço-tempo narrado por Schlink fazia com que Hannah sempre se referisse a Michael, no original em alemão, como "jüngchen", que seria algo como "garotinho" em português. A língua inglesa desfaz o encanto ao usar a palavra "kid". Independentemente disso, o uso de qualquer desses termos indica que Hannah identifica Michael como uma imagem do passado. A própria negação do passado por Hannah permitiu que os dois se relacionassem. Enquanto esse passado retorna, porém, o presente é impossível, é perdido. A menos que o que passou seja decifrado.


E é exatamente este o contexto da relação entre os dois: uma Alemanha em ressaca do pós-guerra, em que os jovens julgam os "criminosos" nazistas, para promover da memória coletiva um impossível apagão do que aconteceu, para esquecer que os próprios pais foram testemunhas do horror sem nada fazer contra isso. Para conferir sentido e poder continuar escrevendo a história (no formato tão equivocadamente difundido de progresso) através da causa e da conseqüência, neste caso representadas pelo crime e a punição.


Alguns críticos afirmaram que é por demais rasa a discussão de crimes de guerra que o filme evoca. Esta, porém, é uma escolha extremamente acurada do diretor: a questão central não é crimes de guerra ou a ressaca moral do holocausto. A discussão pública, inclusive em tribunais, de temas polêmicos não é sempre superficial de qualquer jeito?! O ponto de "O Leitor" é que o ruim acontece por escolhas individuais, pautadas mais na ignorância do que na maldade, e que muitas vezes o fio narrativo que tentamos tecer para entender e julgar nos leva a escolhas equivocadas. Ou o mais próximo possível da redenção. Como arrisca descobrir o protagonista que primeiro narra os livros para no final narrar a sua própria vida.


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O mesmo cuidado com a significação, por outro lado, não é visto em nenhum dos longuíssimos 165 minutos de duração de "O Curioso Caso de Benjamin Button". Visualmente impressionante, o filme não consegue, porém, criar uma imagem sequer que fuja ao óbvio ou que conquiste o espectador, que fique com ele. O diretor David Fincher que havia feito com Zodíaco o seu melhor filme parece ter retrocedido e escolhido fazer cinema didático para público com idade mental de uma criança de 7 anos de idade.

A preocupação de Fincher com os deslocamentos de corpos no tempo-espaço deveria ter sido imensa para uma história que quer narrar o amor entre um homem que desenvelhece e uma mulher que envelhece. Mas isso não transparece em nenhum momento do filme. A ponto da renúncia do personagem de Brad Pitt, que quando perde a maquiagem e rejuvenesce atua mal, ao amor de personagem de Cate Blanchett parecer tola e artificial. Junta-se a isso uma narrativa em off baseada numa New Orleans momentos antes do furacão Katrina atacar. O porquê disso o filme jamais se preocupa em identificar. Um editor mais ousado poderia, inclusive, ter cortado tudo isso do filme que não faria falta.

O filme se perde em excessivo em fragmentos de história tentando evocar truques que "Forrest Gump" já tinha usado de forma bem mais eficaz. Lá pelo meio do filme, inclusive, Fincher é acometido por um surto de Amelie Poulain que nos faz sentir vergonha por ele. E o que dizer de um filme em que a narração em off não corresponde de forma alguma às imagens mostradas e, pior, passa melhor a mensagem do que elas próprias?

Falar que Benjamin Button traz uma profunda reflexão sobre vida e morte é uma das maiores besteiras que já ouvi na vida! O que existe é puramente uma excelente idéia do conto de F. Scott Fitzgerald desperdiçada em anedotas vazias. Será que os membros da academia são acometidos periodicamente por um mal súbito que os faz considerar porcarias como Benjamin Button ou Crash dignas de indicações nas categorias principais do Oscar? Sei não...




Um comentário:

Renato disse...

Bom saber que esse não é um blog finado como eu pensava. O Leitor é aquele romance que começamos a ler na aula da Dominique em alemão, não é? Vc chegou a terminar ele então? Eu lembro de não ter acabado, mas vi o buzz em torno dele nas livrarias, mas ainda não vi o filme. Fiquei curioso agora depois do seu post. Talvez haja esperança dele estar passando aqui em Ithaca.