sexta-feira, 3 de abril de 2009
Fragmentos de consciência
Todo dia volto pra ver se esqueci o ferro na tomada. Não importa se eu tiver me certificado antes, é a certeza de que o fogo não danificará meu ponto de retorno. Não sei por que isso importa, nem porque aquela senhora ali sentada sempre pega o mesmo ônibus no mesmo horário. Parece rabugenta, mas ao sinal de algum conhecido abre um sorriso penoso que logo murcha em um olhar fulminante. Sobe apressada, decidida a não distrair um minuto da sua concentração em qualquer coisa que não o local pra onde vai.
Invejo a sua concentração; justamente ela me tem faltado um pouco nos últimos tempos. Na verdade, concentro em tudo o que possa parecer grande o suficiente, importante o suficiente. Estou cansado de captar olhares, absorver gestos, decifrar frases que logo são esmagados pelo trator das obrigações diárias. Sempre repito a mim mesmo que nada é maior do que as pessoas, como se sentem, como vivem, o que mudam. E isso é algo tão fácil de esquecer... Basta se colocar um objetivo fictício: fazer vistoria no carro, ir comer naquele lugar ali, escolher que filme vou assistir mais tarde.
Abro o caderno de cultura e me enojo. Tudo é falso, feito com o objetivo de causar em alguém a sensação de guia espiritual supremo, a cujos conselho e indicação todos devem se dobrar. Nem se mudar pra programação do cinema escapo: 90% do que está ali também é um produto, feito para causar sensações, mas raramente para instigar, para falar o que todo mundo pode ter esquecido de dizer. Cada vez mais odeio esquematismos. Acredito com sinceridade que toda obra honesta, independentemente do seu grau de complexidade, é capaz de comover e instigar em igual proporção. O difícil é achá-las sem ser exposto a tantas banalidades. O pior é quando o banal se disfarça de elegante e consegue enganar.
Lembro que outro dia assisti ao tão falado documentário "Santiago", do João Moreira Salles, sobre o culto mordomo de sua rica família. A frieza do diretor nos congela, assim como congela o protagonista. Não me engano, aquele filme foi feito para parecer um brilhante exercício metalingüístico. Mas brincadeiras com a gramática do cinema não me comovem desde que deixaram de ser novidade. De fato, também outro dia, peguei o final de "Juventude Transviada" na TV. Esse, aliás brilhantemente dirigido pelo Nicholas Ray, realmente me toca. O sacrifício final de Plato, que tanto admira (e, talvez, ama) James Dean, é tão bem integrado ao restante, que realmente sentimos o verdadeiro significado de solidão. E é das lágrimas da senhora negra falando ele não tinha ninguém que tiro as minhas também.
A cada dia que passa, me convenço mais e mais que as únicas questões realmente importantes são aquelas sócio-políticas, culturais, existenciais ou relativas ao amor. Qualquer outra, é um desdobramento, realmente importante ou não, de uma dessas. E de todas essas, o amor é o que mais me tem tocado nos últimos dias. Em todas as suas formas. Talvez seja por isso que a música é a expressão que menos me incomoda nesses últimos tempos. Muitos falam das frivolidades das canções pop de amor. Eu prefiro falar da genialidade das canções pop de amor. No meu celular, tocam agora Portishead (sempre a Beth Gibbons, seja solo ou em grupo), The Cure, Radiohead, Glasvegas, Morrissey, Animal Collective, Sonic Youth, Belle and Sebastian... Cada música de cada um deles fala de um aspecto do amor. De uma forma que sempre me traz algo de novo.
A PJ Harvey canta "I volunteer my soul for murder". E eu me encanto com tal forma de cantar, de escrever, de amar a ponto de colocar a música em loop. Existem ainda tantos mistérios a descobrir, tantas coisas pra mudar. E tudo pode começar numa noite, alguns bons amigos, uma garrafa. E quem sabe a música de pelo menos um deles vai ressoar com grande força em todos e convidar para um brinde à eterna transformação?
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Já que o assunto é amor, e considerando que eu felizmente abandonei qualquer senso de pieguice nesse post, tenho considerações a fazer a um amigo com quem conversava esta semana. Certas formas de amar são mais difíceis do que outras, por tudo que envolvem, todas as pressões e tudo o mais. Nessas situações, em que uma espiral de dúvidas e preocupações corroem, talvez a coisa mais importante seja retornar ao simples: você ama ou não ama aquela pessoa? Gosta ou não gosta? Você se pega pensando nela, de repente, no meio do dia, e isso parece muito mais importante do que o que você tá fazendo?
Se a resposta pra tudo isso for sim, então que tal priorizar o mais importante?! Se o relacionamento não estiver acontecendo, se a pessoa que você gosta não está do seu lado, aproveitando tudo o que pode, de que adiantam dúvidas ou preocupações? Do que adianta se preocupar? Se o sentimento mútuo existe e é forte, o natural é vivê-lo e não lutar contra ele. Estando juntos, todo o resto se resolve. :-)
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Em Busca de Juízo
Dias desses, peguei no GNT reprise de um programa da Marília Gabriela em que a jornalista, apresentadora e atriz nas horas vagas entrevistava a cineasta Maria Augusta Ramos e a juíza Luciana Fiala. A primeira é diretora do ótimo documentário "Juízo" e a segunda é um dos juízes que que atuam no tribunal de Paracambi, no Rio de Janeiro, em que o registro documental é realizado. A ação filmada, em questão, é o julgamento de menores infratores, complementada por entrevista com as famílias ou visita aos locais onde moram, além de imagens aterradoras das celas dos reformatórios, em que adolescentes se amontoam em beliches sem nenhuma atividade intelectual ou cultural.
No documentário, Maria Augusta optou por não usar trilha sonora e, como não podia veicular as imagens dos menores, optou por substituí-los por não-atores que vivem em situações sócio-econômicas muito similares. Ao evitar ao máximo acrescentar tratamento estético às imagens e sons que registra, a cineasta ressalta a opressão do encarceramento e o choque com a realidade de guerra civil em que esses adolescentes estão inseridos. E também a postura forte, em momentos quase histérica da juíza Luciana, que foi, neste caso sim, a protagonista do trailer do filme.
Luciana profere opiniões e julgamentos sobre os réus, todos com a segurança de quem acredita veementemente nas leis brasileiras (no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente) e quer fazê-las valer. Quando perguntada por Marília Gabriela se a sua postura no tribunal não seria um tanto conservadora, Luciana repele: "ser conservador não é o ponto central da história, o ponto central é ser justo". O uso de palavras tão pesadas para qualquer significação frequentemente é o calcanhar de Aquiles de qualquer argumentação. Neste caso, Luciana as usa para tentar repelir aprofundar a questão. Quando Marília pergunta como é mandar adolescentes para reformatórios que não reformam, só pioram tudo, a juíza afirma que procura fazer a sua parte, que não poderia deixar de exercer o poder judiciário mesmo se tivesse dúvidas em relação ao legislativo.
Nesse ponto, três questões se abrem. A primeira, e mais óbvia, é a dos desempenhos de diferentes papéis; enquanto o juiz, baseado em leis, assume o papel de designador da última palavra sobre qualquer assunto sob o qual tenha jurisdição, o jornalista não profere julgamentos, apenas perguntas capazes de proporem novos enfoques sobre os acontecimentos. Nesse sentido, o filme documentário que se quer isento, observador imparcial de tudo (ainda que saibamos ser isto impossível) e a entrevista se complementam com perfeição.
O segundo - e mais grave - é um gravíssimo rompimento entre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Tão grave quanto o rompimento de classes sociais de que Maria Augusta fala à apresentadora. Colocando de forma até simplista: o governo não cumpre com afinco e severidade as leis que o legislativo formula, o que abre brechas para que, além de todos os outros motivos culturais, psicológicos e sociais, esses adolescentes cometam infrações. Sobra ao judiciário punir tais infrações, sem que os infratores sejam efetivamente reabilitados pelo executivo (novamente ele!). O círculo vicioso se arrasta sem que haja um canal de comunicação oficial, efetivamente capaz de dar conta e entender os gargalos no processo. E isso é algo que o próprio capitalismo há centenas de anos nos ensina e que constitui um dos teoremas básicos do marketing: formulação - teste - feedback - reparo. Certamente, é uma discussão com muito pano pra manga, me sinto até um pouco verde demais pra falar disso.
Por último, a questão que nunca quis calar: quem vigia e pune quem vigia e pune? Se o próprio exercício das leis tem o seu grau de subjetivação, ou seja, está condicionado ao entendimento das condições que pedem ou não a aplicação delas, porque essa busca pelo entendimento é com frequência tão rasa e tacanha? Na cabeça de alguns, entender demais pode prejudicar a aplicação de leis, absolver os réus... Ou seria medo de que esse processo trouxesse alguma mudança?
De qualquer forma, admito que nunca fui muito afeiçoado ao direito: o pensamento cartesiano que é extraído dele pela opinião pública sempre me fez muito mal...
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Este ano não dei muita atenção pro Oscar, mas consegui assistir 4 dos 5 principais indicados. De dois deles já falei aqui (O Leitor e Benjamin Button). O único que não consegui assistir foi Frost/Nixon, mas como é do Ron Howard, um dos maiores cineastas-impostores de Hollywood da atualidade, não pretendo ligar muito. "Slumdog Millionaire" é talvez o mais refinado filme de Danny Boyle em termos estéticos. É cinema pop de boa qualidade, mas passa longe de ser um grande filme. E, claro, como já vi alguns dizendo por aí, bebe muito de Cidade de Deus mesmo.
O mesmo não dá para dizer de "Milk", a primeira cinebiografia da carreira de Van Sant. Ao optar por uma narrativa calcada no documental, o diretor não tenta penetrar na mente de cada um dos personagens do movimento gay em prol dos direitos humanos da década de 70, nem desvendar a personalidade de Harvey Milk, o político, o primeiro assumidamente gay a ser eleito nos EUA, que catalizou tudo isso. Ele, com a ajuda do roteirista premiado com o Oscar Dustin Lance Black, usa como base uma única gravação em fita de Harvey para contar a história de um personagem que se confundiu com a política do seu tempo.
E, principalmente, para fazer um filme abertamente panfletário, o que, de certa forma, perdoa a narrativa por demais esquemática; se a opção é pela popularização do filme, então o raciocínio seria correto. As propostas estéticas que Van Sant fez em filmes como Elefante, Last Days e Paranoid Park são pouco vistas aqui, com exceção de um ou outro plano-sequência dos personagens. Amparado por excelentes direção de fotografia e edição, o espaço ficou aberto para um estelar grupo de atores concederem brilhantes atuações, em especial Sean Penn, justamente premiado com o Oscar, e Josh Brolin. E tais atuações são de grande relevância: é talvez a primeira vez que um filme mainstream com personagens homossexuais pôde mostrar as vidas de casais, suas relações, refeições, demonstrações de afeto, longe de preconceitos e como ela efetivamente é - nada diferente da heterossexual.
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Numa operação parecida, a da figura pública e homem que se confundem, Darren Aronofsky fez o filme mais injustiçado deste ano nas premiações (junto com "Vicky Cristina Barcelona", do Woody Allen): "O Lutador". Contando com uma bela atuação de Mickey Rourke, até agora me impressiono com a classe e a elegância com que o diretor constrói a trajetória do lutador de luta livre cuja vida só recompensava dentro do ringue. Ao longo do filme, aos poucos, até a maravilhosa cena final entendemos que o personagem de Rourke era o mito que não conseguia ser homem comum.
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Ainda não comecei a assistir à nova temporada de 24 Horas, mas o telefilme que fizeram já me provou que tem tudo que sempre gostei na série: a embaixada americana na África é filha da puta, a atuação da ONU é omissa, empresários americanos armam generais e financiam golpes de Estado em país africano. hehehe Começou bem...
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Começou bem também o ano pra música. O Glasvegas fez um álbum com algumas poderosas canções, influenciadas por gente como My Bloody Valentine, Arcade Fire, Jesus and Mary Chain, U2 e até pelo obscuro Twilight Sad. É música para grandes estádios.
Quem fez, porém, um dos já prováveis 10 álbuns de 2009 foi o Animal Collective. Nunca dei muita bola pra esse coletivo, que já tem inúmeros álbuns na bagagem, mas este último, "Merriweather Post Pavilion", apesar não ser perfeito, é algo fora do comum! É inovador, ousado, instigante. Faz sobreposições de melodias e vozes que no início você não acredita que vão efetivamente conseguir. Se o Beach Boys fosse fazer o Pet Sounds do novo milênio, ele soaria mais ou menos assim:
domingo, 8 de fevereiro de 2009
Sobre injustiças e equívocos
Pensando com calma outro dia me dei conta que 2008 foi um dos anos mais negros para o cinema. Em geral. Se fosse elaborar uma lista com os 10 filmes que mais gostei, certamente não conseguiria completar 10... E em tempos de longas pouco inspirados, a crítica (e principalmente o público, mas este é tema para outro momento) deveria, acima de tudo e ao menos em teoria, exercer uma pressão contrária, esclarecendo ao espectador a irrelevância de tantos filmes incapazes sequer de divertir.